O Escravismo Negro, um olhar histórico.
Quando ouvimos falar sobre escravidão no Brasil geralmente o que temos são uma sopa de estereótipos sobre a vida do negro escravo, mas, um fato curioso e muito interessante poucas vezes anunciado, é que a historiografia brasileira ( independente das posições e esquemas ideológicos, demonstra uma outra realidade, uma dessas realidades, é a vida de um escravo no Brasil, de preferência o urbano, ou escravo ganhador ou de ganho, marcado pela presença baiana ( necessáriamente soteropolitana, e carioca ).
Contudo, nos últimos anos, muitos estudos tem demonstrado que a escravidão ( principalmente esse estilo de escravismo) estaria costurando uma série de elementos que configuram um ponto de vista muito mais complexo e nada efêmero para as circunstâncias sociais da escravidão nos seus últimos séculos. No caso da escravidão urbana, ao que tudo indica, já seria uma espécie de articulação interna e metamórfica capitalista.
Na escravidão urbana, no caso do ganho as chances de o escravo superar sua condição social através do pecúlio e em consequência alforria, era grande. Como explica João José Reis;
"Nem o ganho nem a alforria — esta até 1871 — eram regidos pela lei positiva, mas pelo direito costumeiro. Nenhuma legislação obrigava o senhor a permitir que seu escravo embolsasse porção do que ganhava, maior até do que o contrário, nem aceitar que ele usasse sua poupança, cham ada então pecúlio, para comprar a liberdade."
O que acontecia era um acordo informal, negociado, parte do direito costumeiro por meio do qual o senhor apostava na produtividade, os arranjos dessa ordem configuravam a cultura escravista na cidade, e não só na Bahia, ainda que não fossem absolutamente ausentes do campo.
João Reis explica que;
"O escravo ganhador organizava com alguma autonomia o seu tempo de trabalho — o tempo, o ritmo e, por vezes, o volume de trabalho. O trabalho do ganhador era medido por tarefa cumprida, não por unidade de tempo, o que constituía algo familiar aos atricanos. "
Nessa atividade do ganho tanto escravos mas principalmente ex escravos libertos possuíam algum escravo, segundo dados da historiadora Maria Inês Cortes de Oliveira revela que, no período (1790-1850), daqueles libertos que deixaram testamento, ou seja, os que tinham alguma propriedade, aproximadamente cerca de 75% possuíam pelo menos um ou 2 escravos, além de diversas propriedades e bens imóveis. Isso mostra um fato extremamente interessante, o poder de ascenção do africano em Salvador era algum comum e natural, e como ter escravos era sinônimo de alguma desenvoltura social e econômica, poderiam se considerar ainda que não ricos, mas com uma vida relativamente estável.
Por outro lado, notórios libertos donos de escravos tornaram-se indivíduos poderosos dentro da sociedade baiana, um desses sujeitos era por exemplo, Manoel loaquim Ricardo, que possuía vários cativos no ganho, Em 20 de junho de 1865, Manoel Joaquim Ricardo morreu em Salvador, com estimados 90 anos de idade. Deixou viúva, três filhos e uma filha. Segundo José Reis;
"Seu inventário registrava propriedades avaliadas em 42 contos de réis, distri-buídos em vinte e oito escravos, quatro casas, incluindo uma senzala, e duas roças. Segundo qualquer padrão de medida, o falecido era um homem rico no Brasil urbano daqueles dias: pertencia aos 10% da população que formava a elite econômica de Salvador, indivíduos que ao morrer deixaram bens avaliados em mais de 20 contos; e ele também poderia ser classificado como grande proprietário urbano de escravos."
O Manoel Joaquim Ricardo era, no entanto, africano liberto, um ex-escravo. Como Demonstra Maria Inês, Em meados do século XIX, 22% dos 279 africanos libertos que moravam na freguesia de Nossa Senhora de Santana, um típico bairro urbano de Salvador, eram registrados como proprietários de escravos, cerca 52% senhores de mais de dois escravos, embora nenhum com mais de oito, apesar disso os números são relativamente altos.
Outra figura de renome foi foi Antônio Xavier Ricardo, dono de tavernas, armazéns e pelo menos 9 escravos, possuía uma fortuna calculada em 66 contos de réis. Além disso, pode-se encontrar ainda mais figuras proeminentes ricos em Salvador como mãe marquinhas, Domingos Sodré, Cipriao José Pinto, antão Teixeira, todos esses sujeitos com imóveis, escravos dentre outras riquezas. Segundo António Riserio;
"O africano Francisco Nazareth (de “nação jeje-mahi”) ainda era escravo quando comprou seu primeiro escravo, um preto de “nação cabinda”. E não havia nenhuma novidade no fato: ele mesmo fora escravo de outro escravo, que conseguiu a alforria antes dele: José Antonio d’Etra, um dos africanos mais ricos da Bahia, que chegou a possuir um plantel de 50 negros escravizados."
Como alerta corretamente Sheila de Castro Faria Citada por Risério em seu livro sinhas pretas na Bahia, suas escravas, jóias, etc. Para exemplificar:
“... sugiro que quem tem um escravo, nem que seja um só, não pode ser considerado pobre nesta sociedade, em qualquer época. Considero um con-trassenso afirmações com as que faz Maria Odila da Silva Dias [ Cotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX], que qualificou como pobres mulheres negras ou mestiças proprietárias de até dez escravos, em São Paulo, no século XVIII”.
Por outro lado, as coisas eram ainda mais complexas, os escravos tendiam a torna-se tão ricos e poderosos que até mesmo obter sucessos no tráfico negreiro era possível. Em vários casos como o de GBEGO SOKPA, este sujeito fora um africano vendido como escravo ao Brasil no século xix. Seu proprietário, sir Joaquim d’Almeida era um traficante de escravos da mesma época. Gbego teria nascido em Hoko, cidade da nação Mahi, uma espécie de confederação na África Ocidental, Quando criança, o exército de rei africano próximo o atacou, destruindo sua vila e capturou sua família. Daí ele fora Levado a ferros até a costa, Gbego foi vendido para traficantes de escravos e embarcado no porão de um navio negreiro, Tumbeiros. No outro lado do Atlântico, Joaquim d’Almeida alugava navios negreiros para ir até o Golfo do Benim adquirir escravos como Gbego. Comprava “peças”, como se falava na época, efetuando pagamentos aos reis africanos ou os intermediários com ouro, libras esterlinas, dólares ou rolos de fumo da Bahia.
Entre 1814 e 1826, o seu proprietário e ele, viajaram pelo menos onze vezes para a África, a bordo de tumbeiros, capazes de carregar até 600 escravos. Gbego conquistou a confiança de seu proprietário e passou a acompanhá-lo nas viagens, tornado-se já aí um comerciante de escravos. Com a morte do seu proprietário, foi lhe deixado um bom testamento, daí o Africano já incorporado nos anseios da sociedade da época, mudou seu nome ( nome do seu antigo proprietário) o Joaquim d’Almeida, e por volta de 1845, decidiu deixar a Bahia e se mudar para a costa da África Ocidental.
Contudo, antes da viagem, escreveu um testamento. Afirmou possuir 9 escravos em seu poder, 36 em Havana e 20 em Pernambuco, fora os que tinha sobe seu julgo direto, além disso, possuía vários bens imóveis como uma casa em Salvador e participações em dois navios Tumbeiros que no momento cruzavam o Atlântico.
Se isso ainda é pouco notório, o mais impressionante era uma rede poderosa montada pelos traficantes negros de escravos na África interligando ao Brasil. Juntos Francisco Félix de Souza, João de Oliveira e Zé alfaiate genro de Souza, teriam tornado-se os maiores traficantes de escravos brasileiros e até mesmo ocidentais, o primeiro mulato e os outros dois traficantes de origem africana.
João de Oliveira; segundo o pesquisador Laurentino Gomes em seu livro a Escravidão volume II, é dito que;
" Ao desembarcar na capital baiana, trazia consigo um navio negreiro em cujos porões viajavam 122 africanos cativos — 79 homens e 43 mulheres. João de Oliveira foi um desses comerciantes aventureiros."
Ele fundou dois dos principais entrepostos na Costa dos Escravos; o do Porto Novo, de onde recebia escravos do reino de Oyó, e outro em Lagos, este sob influência do reino do Daome. Depois de abrir os portos, estabeleceu a rota do tráfico de escravos dali até as cidades de Salvador além de Recife.
O fator mais decisivo, no entanto, era o próprio preço dos escravos. Entre 1757 e 1758, um cativo custava, por média, entre treze e dezesseis rolos de fumo baiano em Ajudá, mas, em Porto Novo era ofertado por algo entre oito e doze rolos. Desse modo, em Porto Novo, ao desembolsar o mesmo valor em mercadorias, um capitão negreiro conseguiria adquirir um número de escravos cerca de 50% maior do que em Ajudá: até 375 por navio, contra 230 no porto daomeano. Como é dito por Laurentino;
"Tudo isso fez com que, no fim do século XVIII, o entreposto fundado por João de Oliveira ultrapassasse Ajudá como o mais importante do Golfo do Benim. Segundo estimativas, de Porto Novo saíram 37% dos escravos que deixaram o Golfo do Benim entre 1776 e 1800, ao passo que Ajudá exportou 29% desse total. Segundo o banco de dados Slavevoyages.org, entre 1750 e 1760, época em que João de Oliveira estava em ação na África, 54.558 mil escravos desembarcaram na Bahia vindos do Golfo do Benim."
Outro gigante africano do tráfico fora José Francisco do Santos, como anota Pierre Verger, o ano era 1846, e Francisco dos Santos, codnome "Zé Alfaiate", já era um homem rico. Tal apelido se deve ao fato de que, ainda quando jovem, aprendeu a trabalhar com couro, costurando belas peças e encantando seus clientes, era um ganhador. Ao deixar seu ofício para trás, passou a comercializar africanos quando se casou a com filha de Francisco Félix de Souza, à época o maior comerciante de escravos da África e do ocidente. Quando morreu, aos 94 anos, Zé era considerado um dos homens mais ricos do mundo, teria Deixado uma imensa fortuna, avaliada para a época em torno de US$ 120 milhões de dólares caso convertido. Além disso, havia expandido todos os seus negócios para a exportação de ouro, azeite de dendê e óleo de palma, sendo pioneiro inclusive nesse comércio também. Em seu testamento, deixou 53 viúvas, 80 filhos e nada menos que 12 mil escravos. Como relata Verger em várias cartas;
"Ele, o Zé Alfaiate costumava marcar seus escravos com um “5” no seio direito"
“Pela escuna Esperança, eu carrego por minha conta 5 fardos, sendo 3 H [homens] e 2 M [mulheres] com a marca 5 no seio esquerdo”,
Em outras cartas, diz ele em 4 de outubro de 1844. Se enviava escravos a mais de uma pessoa, recorria a marcações diferentes. Numa carta de 25 de março de 1845, por exemplo, ele avisa a um comprador do Rio de Janeiro o envio de “20 fardos, sendo 10 Homens e 10 Mulheres…marcado 5 no seio direito” e outros “6 Mulheres marcados com PL acima do umbigo...
O maior traficante ocidental fora no fim do século 18, o mulato brasileiro ( não se sabe se baiano ou carioca), Francisco Félix de Souza que chegou ao daomé para trabalhar como escrivão e contador do Forte de São João Batista de Ajudá. Seu irmão, comandante do forte, morreu em 1805 e Francisco Félix assumiu o posto de comandante de modo informal, sem pedir permissão a Lisboa.
No dia a dia do forte, que consistia em arbitrar negócios entre navegadores e mercadores, Félix ganhou reputação de bom negociante e fornecedor de escravos. Só em 1812, cerca 45 navios negreiros baianos adquiriram escravos em Ajudá. Com o tempo, o próprio Francisco Félix virou dono de navios negreiros. Como relata em sua biografia Alberto da Costa e Silva;
“Adquiriu tanto dinheiro que se tornou ele próprio comerciante de escravos e provavelmente o homem mais rico na Terra, escreveu o comandante britânico Henry Huntley, que passou pelo Daomé em 1831 e 1838."
Esses três indivíduos juntos criaram uma rede comercial tão poderosa que foram fundamentais não só para a manutenção do Escravismo, como foram agentes diretos na história da escravidão negreira.
Félix de Souza em foto.
Mas, voltemos ao Brasil, de modo preciso a Bahia do século xix. A formação de uma elite político-religiosa escravista negra também fora evidente, como mostra os historiadores Luis Nicolau pares, João José Reis, Kátia Mattoso, entre outros..
Essa elite composta por vários negros bozales ex escravos, Sobretudo nas figuras religiosas da época, caso de José Pedro Autran, e sua própria mulher, a mãe de santo Francisca da Silva/ ou Iyá Nassô.. Como é dito por Riserio em sinhas Pretas, se remetendo a lisa Earl Castillo e Luís Nicolau Parés é dito que:
“Na década de 1820, desembarcavam no Brasil um número crescente de nagôs, aprisionados nos conflitos relacionados ao colapso do império de Oió. O processo começou em 1789 e intensificou-se nas primeiras décadas do século XIX... A própria Francisca da Silva, cujo nome iorubá, Iyá Nassô, corresponde ao título da sacerdotisa responsável pelo culto a Xangô no palácio do alafin (rei) de Oió, foi vendida ao tráfico em consequência desses conflitos e intrigas políticas. Considerando que em 1822 ela já era liberta e senhora de escravos, podemos supor que tenha sido escravizada na década anterior”.
Por sua vez, rica ficou também uma escrava de Iyá Nassô, que viria a ser a primeira mãe de santo da (Casa Branca do Engenho Velho): a africana Marcelina Obatossí. Essa Marcelina comprou sua alforria em 1836, pagando cerca de 500 mil-réis ao casal José Pedro Autran e Iyá Nassô, preço considerado caro pra época. Quando liberta, chegou a ter pelo menos 18 escravos – e também cobrava caro para lhes conceder cartas de alforria. Contudo, Marcelina e família também acumularam propriedades imobiliárias, Nassô e seu marido possuíam nada menos que 22 escravos, bens imóveis, por aí vai.
Como é dito por Riserio:
"Casas na Rua das Laranjeiras, na Ladeira do Taboão, junto à Praça da Piedade, no Bângala, na Cruz do Cosme. Na década de 1860, a família contava com meia dúzia de casas – cinco delas no hoje chamado “centro histórico”.
Segundo relatos, como é o caso da obra “Marcelina da Silva e seu Mundo: Novos Dados para uma Historiografia do Candomblé Ketu”, Lisa Earl Castillo e Nicolau Parés, anotam:
“As rendas geradas pelos aluguéis... assim como, provavelmente, os lucros do ganho dos escravos, sem esquecer os possíveis dividendos provenientes dos serviços es-pirituais, forneciam a base da economia desse bem-sucedido casal de libertos [Marcelina e Miguel Vieira], trazendo-lhes uma prosperidade que os colocava numa privilegiada camada social. Marcelina e sua família pertenciam, assim, a uma espécie de elite entre a população africana de Salvador, com uma segurança econômica e um padrão de vida material fora do comum”.
As joias como aponta Riserio era outro fator predominante do poder dessas pessoas. a própria Marcelina Obatossi possuía joias, muitas inclusive.
Em uma passagem Riserio comenta:
"Como na Freguesia de Sant’Anna, por exemplo, onde moravam Otampê Ojaró, a fundadora do Alaketu, e Luiz Xavier de Jesus, senhor de 16 escravos e oito imóveis espalhados pelo bairro... E, de outra parte, temos o aspecto das joias como crachás de status, por assim dizer, signos mostrando a toda a sociedade envolvente que aquela negra era detentora de posses, propriedades e recursos. Era dona de escravos, imóveis e joias, vestindo-se vistosamente em suas andanças pelo espaço urbano."
Em resumo, as joias e os escravos simbolizavam a situação social e servia para diferenciá-la das preta ou pretos escravos, e situá-la no rol de um grupo economicamente privilegiado, onde os negros Bozales dentro dessa "esfera da elite dos libertos", mostrando-se como uma das células fundamentais das classes dominante e dirigentes da época, usando aqui uma categoria Gramsciana, e que muitas vezes esses negros estavam em melhores condições de vida do que diversos membros do mundo senhorial, seja eles brancos ou não.
Portanto, que enriqueceram e modificaram, em amplitude e profundidade, o horizonte mental, estético e cultural da Bahia e do Brasil, é mais que um fato, essas "sinhas" como aponta Riserio, no caso aqui das líderes religiosas ou "ialorixás", sobretudo, Iyá Nassô, Marcelina Obatossí, Otampê Ojaró, Maria Júlia, Obá Biyi, Senhora e Menininha do Gantois. Essas mulheres africanas, intervieram criativa e de forma poderosa na configuração sócio econômica e cultural de Salvador e do Brasil, sendo elas ricas e proprietárias de escravos, bens imóveis, jóias e por aí vai..
Referências;
João José Reis; Ganhadores, a greve negra de 1857 na Bahia.
Kátia Mattoso; Ser escravo no Brasil.
António Risério; Sinhas pretas da Bahia, suas escravas, suas jóias.
Maria Inês de Oliveira cortês; o liberto, seu mundo e outros.
Luis Nicolau Pares; A formação do Candomblé.
Alberto da Costa e Silva; Francisco Félix De Souza, o mercador de escravos.
Pierre Verger; fluxo e refluxo do tráfico de escravos na Bahia no século XVIII e XIX.
Jacob Gorender; Escravismo Colonial.
Laurentino Gomes; Escravidão volume II.
Luis Felipe de Alencastro; tratado de viventes.
Marcelina da Silva e seu Mundo: Novos Dados para uma Historiografia do Candomblé Ketu, Lisa Earl Castillo e Nicolau Parés.
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